14 de mar. de 2010

Sobre joelhos estragados e mentes cansadas


1 mês: 30 dias: 720 horas: 43.200 minutos: 2.592.000 segundos. Esse é o tempo em que estou em El Chalten para escalar, mas sem escalar. Cheguei em Chalten no dia 19 de dezembro, cheia de vontades, sonhos e desejos. Os planos eram muitos. Bom, considerando que é a Patagônia, tanto quanto podemos planejar. Isso porque o tempo aqui é um dos piores do mundo e ficamos sempre esperando uma brecha no tempo ruim ou uma “ventana” de tempo bom para podermos escalar. Aqui em Chalten verificamos que planejamento em escalada significa ter flexibilidade e jogo de corpo e todos os planos tem que ser mudados de acordo com o que o bom (ou mau) clima dita. A “ordem” aqui é repensar o planejamento a cada dia, a cada minuto, a cada segundo. E ir trabalhando de acordo com o que o contexto se apresenta e com quem você está.
Com essa idéia, viemos com sonhos de fazer algumas escaladas específicas. Chegamos com muito frio, quase todos os dias com temperaturas na cidade na beira de 0o , chegando inclusive a nevar na cidade em pleno Natal. E enquanto a chuva caía frequentemente na cidade, as montanhas se escondiam por trás de uma cortina branca de nuvens. Só podíamos deduzir que lá em cima estava nevando e muito. Foram diversos dias de tortura assim até que uma mini brecha no tempo ruim apareceu na previsão.
A instabilidade continuava e a brecha se movia de um dia para o outro até que se estabilizou no dia 29/12/09. Aparentemente seria um dia sem chuva, com muito vento e temperatura baixa. Eu e Bernardo nos organizamos para portear (levar) os equipamentos para um local de bivaque chamado Piedra Negra. Acordei com um dia lindo de doer: o sol brilhava contra um azul que não tinha visto há mais de 10 dias e o vento estava relativamente baixo. Mudamos nossos planos! Incluímos o equipamento de bivaque (saco de dormir, saco de bivaque, fogareiro, kit cozinha e comida para 2 dias) para dormir lá em cima e tentar alguma escalada no dia seguinte.

Assim partimos (eu, Berna, Wal, Show e Play) pelos 8 km de trilha plana até Piedra do Fraille e depois por mais 2 horas e meia de pura subida íngrime (1.000 metros de desnível) até Piedra Negra, nosso destino para a noite. No caminho, cruzamos com um grupo de europeus que nos avisou “calorosamente” que o termômetro deles marcava 0o. Eram 2 da tarde e o vento se fazia presente e a sensação térmica beirava o “(muito frio)2.” Ao chegar ao bivaque, nos deparamos com muita neve, muito frio e nenhuma disposição de passar a noite ali. Como sempre, assim que chegamos começamos a colocar todas as roupas que tínhamos para preservar o calor dos nossos corpos. De pouco adiantou, já que o frio era muito intenso. Eu e Berna nos entreolhamos e pensamos que naquelas condições era impossível escalar e assim não havia sentido permanecer ali. Escondemos os equipamentos que íamos deixar embaixo de uma pedra e rapidamente nos pusemos em movimento: para baixo, para o “calor” da cidade e o aconchego do bar do Seba.
Os dias foram passando e o tempo só fazia piorar. As únicas janelas que víamos eram as de vidro, nas paredes das casas. E enquanto o bom tempo não vinha, continuávamos a curtir os amigos brasileiros e argentinos.
Vir para Chalten é isso: é redefinir o significado da palavra paciência. A espera colocava todos com os nervos da pele e o que reinava era a ansiedade. Começamos a ver “brechas” ou “ventanas” onde sabíamos, no fundo, que não existiam. Foi assim que, nos primeiros dias do ano, resolvemos subir a Polacos, um bivaque no Vale do Torre. A idéia era tentar alguma coisa na Face Oeste do cordão do Fitz Roy ou então alguma escalada mais baixa, como a da Media Luna ou do El Mocho. Eu e Berna nos organizamos e subimos para Bridwell.
Bridwell (ou De Agostini como é oficialmente conhecido) é um acampamento a duas horas de Chalten, na beira da Laguna Torre. Ali montamos a barraca e dormimos para sair no outro dia para Polacos. No dia seguinte, começamos a subida não muito tarde nem muito cedo. Vinil, Michele e Rafa nos acompanharam por parte do percurso, gravando algumas imagens.
Chegamos ao primeiro glaciar e ele estava um pouco, mas não muito, mudado. Glaciares são muito interessantes pois, como todo rio, está em constante movimento e por isso sujeito a grandes mudanças em pouco tempo. Mas essa parte não demonstrava uma mudança muito grande do ano passado e seguimos com facilidade até a parte da corda fixa. Subimos por ela, alcançamos a morena, para atingir o glaciar “de cima” que é, na verdade, o Glaciar da Adela. Esse também não nos mostrou uma mudança muito grande e ali nos despedimos dos nossos três amigos que tinham que voltar a Chalten ainda naquele dia.
Berna e eu seguimos e decidimos buscar um caminho mais direto a Polacos, sem ter que ir a Niponinos (outro bivaque). Se conseguíssemos, cortaríamos uma hora de caminhada no total. Seguimos por caminhos novos, desbravando as morenas e o glaciar que se mostravam ora amigáveis ora insuportáveis. O pedreiro para subir para Polacos é um dos piores da região e seguíamos com pedras e cascalhos deslizando sobre nossos pés e muito cuidado para não nos machucarmos. Escolhemos um lugar para subir, mas era errado e tivemos que perder uns 100 metros de altitude para chegar a um bom platô, onde poderíamos seguir para a esquerda com mais facilidade. A decisão de descer os poucos, mas árduos, metros não foi fácil, mas a tomamos mesmo assim.
De volta ao platô, seguimos com maior facilidade até encontrar o caminho certo e chegarmos a Polacos. Uma agradável surpresa nos esperava: o melhor lugar para dormir estava desocupado e “esperando” por nós. Nos organizamos ali mesmo: comemos e nos pusemos prontos para dormir. Eram 6 e meia da noite ou da tarde. Dali até as 9 e meia, quando finalmente pegamos no sono, avaliamos o clima: muito vento e neve. Mas a previsão dizia que ia melhorar de manhã.
Dormimos e acordamos as 5 e meia com o vento e a neve ainda presentes. Dois doidos passaram pela a gente gritando: “o sol”. Só pudemos rir e voltar a dormir. Aquele não era tempo para escalar e sim para ficar no quentinho dos sacos de dormir e de bivaque. Mais tarde, ao acordar definitivamente, o vento e a neve ainda caindo, entocamos os equipamentos que ali íamos deixar e começamos a voltar para Chalten. Escalada... nem pensar. Ainda.
Os dias continuavam ruins. O jeito era escalar na cidade e fazer as caminhadas que a região oferece. Mas era difícil motivar a fazer qualquer coisa e a mente seguia com a previsão e nas montanhas que ainda se escondiam atrás de uma espessa cortina de fumaça. Vários amigos se motivavam mais do que eu. Subiam e desciam as diversas trilhas de Chalten e os joelhos começaram a reclamar, a estragar. Na medida que o corpo e os joelhos eram maltratados, a mente se colocava cansada. Cansada de esperar, cansada da ansiedade que reinava e dos humores que flutuavam, cansada de ter esperança.

E a vontade de subir continuava. Eu particularmente não tinha muita vontade de escalar as vias esportivas da cidade, mas não precisava muito para querer subir. Com isso, Sblen, Berna e eu subimos para Piedra Negra para tentar escalar a via Fonrouge-Comesaña, que é a via de conquista da Guillaumet. Play e Show também subiram com a gente para entrar na mesma via.
Dormimos bem, eu e Berna bivacando e os outros três em uma barraca. Acordamos cedo e partimos para cima: mais 500 metros de desnível até a base da via. No início do neveiro Play e Show tiveram que descer. Eles haviam decidido não levar as piquetas para irem mais leves e por questões de segurança era impossível de subir o neveiro sem elas. Eu, Sblen e Berna continuamos até a base da via. Novamente, chegamos onde começa a parte de escalada em rocha e o vento era muito forte. A precipitação que, segundo a previsão, já era para ter acabado, continuava. Nevava e junto com o vento que soprava forte, nos sentíamos em uma das maiores tempestades que podíamos pensar. Esperamos 5 minutos até decidir que descer era a melhor (ou única) opção.
Chegamos em Piedra Negra e Play e Show dormiam na barraca. Arrumamos as coisas rapidamente e tocamos, outra vez, para baixo. Outra tentativa “frustrada”. E as aspas aí caem muito bem. Porque, na verdade, cada subida gera um aprendizado diferente, atingindo ou não nosso objetivo e realmente penso que tudo na Patagônia é válido. Desço para Chalten como uma pessoa melhor, ou ao menos gosto de pensar assim.
E o tempo ruim continuava. Os amigos começaram a ir embora, de volta pro Brasil. Alguns frustrados por não terem podido escalar, fazer a volta ao gelo, ou qualquer que tenha sido seu objetivo. Outros com muito aprendizado na bagagem. Todos com o corpo e os joelhos cansados e estragados. E nós, seguimos em Chalten, esperando ainda por uma “ventana”, que sabemos que vai chegar.... E a curto prazo, a mente se põe cansada; mas a longo prazo, ela certamente está mais forte e nós estamos mais preparados para o “ataque” ao nosso objetivo.


9 de mar. de 2010

O que te motiva?!



Uma boa amiga e grande pessoa tem um blog chamado “O que tem motiva?”.
Não é uma resposta fácil de atingir. Essa temporada na Patagônia, minha segunda, me ensinou muito sobre o que me motiva. Cheguei em dezembro, com motivação 110%. E terminei a temporada com perto de 10% de motivação de subir e escalar. O que aconteceu nesse período para que chegue a esse final será descrito em diversas postagens que farei nas próximas semanas.
O princípio e meio da temporada se mostraram horríveis: muita chuva, muito vento e temperaturas baixas. Sim, é a Patagônia, mas essa temporada estava atípica e se demonstrava como uma das piores dos últimos 10 anos, segundo os locais. Foram 50 dias sem nenhuma brecha no tempo ruim, nenhuma “ventana”. Algumas “pseudo” brechas apareceram na previsão e em todas essas nós subíamos a montanha a tentar alguma coisa. Ou, ao menos, a se movimentar e manter a forma física e mental.
Até que meio de fevereiro chegou e com ele o tempo bom. Foram uns 20 dias de tempo bom, com poucos dias ruins entre as “ventanas”; e esses dias ruins nem eram tão ruins assim; na verdade, eram melhores do que os dias “bons” em dezembro e janeiro. Os primeiros dias da ventana foram amplamente aproveitados, mas aí chegou a hora dos meus parceiros irem embora pro Rio e eu fiquei sozinha em Chalten.

A ida de meu parceiros de volta a casa foi alinhada com uma nova lesão no meu tornozelo. Não estava muito ruim, mas também não estava muito bom. Entre pensar em subir nos dias maravilhosos, descansar meu pé, buscar parceiros, trocar experiências, escolher objetivos, arrumar a mochila, caminhar pesada, entre várias outras coisas, minha motivação foi diminuindo até que chegou a quase zero.
É claro que me martirizava por não subir com um clima tão bom e dias tão lindos. Mas tive que entender que a temporada para mim já havia se acabado. Não foi fácil, mas me dei conta disso e consegui relaxar. Ajudou o vento forte que voltou a soprar nos meus últimos 3 dias em Chalten.
Agora o que me motiva?! Que pergunta difícil. Sei que Chalten por si só já me motiva muito: a treinar, escalar, melhorar como escaladora e como pessoa. Mas sei que não é apenas a montanha ou a escalada que me motiva. Acho que é a experiência toda e para que minha experiência seja plena necessito de coisas que vão além da escalada em si. Passa por aventura, pelo desejo de conhecimento, pela vontade de tocar a rocha e fazer cume, pelo desbravamento da natureza e de quem sou, e acima de tudo, passa por amizade e parceria. Cada vez mais me dou conta que quero estar na montanha com meus amigos, com meus parceiros. E que minha experiência e motivação está muito ligada a com quem estou na montanha.
De qualquer forma, acho que os relatos que farei sobre essa temporada poderão explicar um pouco mais sobre o me motivou durante esse tempo... Espero que gostem. Kmon!
Apoio:

1 de dez. de 2009

Chalten - Previsão do Tempo

Escalar em Chalten é aprender a entender de previsão de tempo e ter paciência. Para o segundo, é difícil ter uma receita de bolo, mas para o primeiro, existem diversos websites que ajudam.
Ano passado as previsões eram muito certeiras, acertando a maioria das vezes inclusive o horário da mudança climática. De todos, o NOAA foi o que me mais chamou atenção, mas os mapas ajudam a entender mais de como será o clima.
Abaixo, algumas dicas dadas por Rolando Garibotti na revista Kooch 10 (edição de Outubro de 2008) e algumas observações minhas.

NOAA - www.arl.noaa.gov/READYcmet.php

Entrar as seguintes coordenadas:
Latitude: -49.3 (Não esquecer o sinal de menos)
Longitude: -73.1 (Não esquecer o sinal de menos)
No próximo menu, em Choose a Forecast Dataset, selecionar: GFS 0-180h (ou qualquer outra opção que melhor lhe atender)
Na próxima página, selecionar: “Default with winds” e “Speed and Direction”; colocar os números e letras do código e depois selecionar “Get meteogram”.
Nesse meteograma, você verá a precipitação, direção e velocidade do vento e pressão barométrica relativa ao nível do mar.
MINHAS OBSERVAÇÕES - Diminua em 4 as horas marcadas embaixo da página para ter o horário de Chaten. A pressão que dá um tempo relativamente estável nas montanhas em Chalten é 1020mba. Os ventos vindo do sul são gelados, mas trazem, geralmente, bom tempo. Dizem os locais que com o vento até 9 nós é possível escalar e com 13 nós, o rapel ainda é possível. Minha experiência lá me mostrou que um vento 7 já é suficiente forte para pensar duas vezes em estar na montanha, a não ser que queira sair voando.

Outra opção é entrar no site da Marinha Norteamericana (www.fnmoc.navy.mil/public), que para aqueles que sabem ler mapas metereológicos, será uma opção muito mais adequada.
Selecionar: “Global and regional weather prediction charts (WXAMP)” e na próxima pagina, embaixo de “South America”, selecionar “NGP”. Dentro dessa opção, virão diversas informações, sugiro olhar principalmente a pressão atmosférica relativa ao nível do mar, a precipitação e os ventos
Para os ventos, selecione “All” do menu “850 hPa Temperature, Winds y Rel Hum”, onde poderá avaliar a direção e velocidade do vento (cores vão do branco, amarelo, laranha e vermelho e quanto mais linhas, mais forte é o vento).
Para avaliar a precipitação e pressão a nível do mar, entrar em: “All” e então “previous 12 hs precipitation rate and sea level pressure”. A pressão relativa a nível do mar está expressa em curvas crescentes: 1004, 1008, 1012, 1016, 1020, etc. Nesse mesmo mapa, a precipitação está expressa em cores (de preta, 0, verde escuro, de 2 a 4 mm, e violeta, 70mm) representa a precipitação prevista para as 12 horas anteriores até a hora do mapa.

Outra opção é www.wetterzentrale.de, entrar em “Top Karten”, “GFS”e “S-Amerika”. Para pressão relativa ao nível do mar, entrar em: “500pa Bodendruck” e os horários do menu.

MINHAS OBSERVAÇÕES
Esses últimos dois eu nunca usei. Para os mapas, eu utilizei os mapas de www.mountainweather.com, fáceis de ler.
Entrar em “computer models”, “MeteoStar”e escolha o mapa da South America, escolher no menu na esquerda os links para precipitação, ventos e pressão relativa ao nível do mar. A legenda é bem tranqüila de ler.

Depois disso, é só fazer a logística toda para aproveitar bem as janelas e escalar aquelas lindas montanhas. E durante a escalada, olho na pedra, no cume e nas nuvens!

2 de nov. de 2009

Sonhos Patagônicos: treinando para Chalten



Já havia escutado que quando você vai pra Chalten pela primeira vez, tem que reservar, pelo menos, mais uma temporada. O lugar é um vício e é difícil não querer voltar para lá imediatamente.
Comigo não foi diferente. Passei a temporada passada em Chalten (dez 08 - mar 09) e o lugar me contagiou tanto que passei o ano de 2009 me preparando para voltar para lá. E é isso que farei nesse próximo verão e para tal é necessário criar projetos mirabolantes para poder treinar.
E foi com Chalten na cabeça que parti junto com Bernardo nesse sábado para fazer 3 vias no Pico Maior de Friburgo. Ano passado havíamos feito os 4 cumes (Pico Menor, Médio, Maior e Capacete) em 1 dia. Esse ano, nosso objetivo era fazer a Arco da Velha (D4 6o VIIa E3, 700m), a Decadence avec Elegance (D4 5o VIIa (A0 VIIc) E2, 700m) e terminar com a Leste (D4 5o V (A0 VI+) E3, 700m), tudo em um dia.
O despertador tocou às 2:20 da manhã. Com relutância, saímos da cama, tomamos café e entramos no carro para ir até o Mascarim. Minha headlamp já demonstrava sinais de problemas sérios. Começamos a caminhada às 3:30, já com apenas uma headlamp, pois a minha quebrou. Chegamos na base da Leste às 4:10, nos equipamos ali, deixamos boa parte das coisas e nos direcionamos para a Arco, passando pela base da Decadence, onde deixamos mais coisas.


Da base da decadence, resolvemos ir pela pedra para evitar o mato e o costão molhado de acesso à base da Arco. Com uma headlamp só, o Berna subia um pouco e olhava para trás para eu subir. De pouco em pouco, ganhamos metros e chegamos na base da Arco às 5:30. Como ainda estava escuro, sugeri solarmos até P1 para eu usar a luz da lanterna dele. E foi isso que fizemos. Havíamos decidido que ele ia guiar a Arco toda, uma vez que ele conhece muito bem a via e eu não. Em P1, ele partiu ainda no escuro, mas com o dia amanhecendo. A via tava meio molhada, mas fomos subindo.

Chegamos na horizontal que estava um pouco molhada, mas era "gosma five ten" e não escorregava. Berna foi guiando e ao chegar no segundo grampo (que é um stubai bem velhinho), ele falou:
- Ainda bem que vou costurar e depois entrar no molhado.
Na mesma hora eu respondi:
- Isso quer dizer que eu vou descosturar e entrar no molhado, to ferrada!
Só pude rir.

Fomos subindo, com partes muito molhadas e outras partes nem tanto. Chegamos no crux e vimos que estava seco. O crux é sinistro, além de difícil, se o guia cair, vai quicar em um platô e continuar caindo. Nada agradável. Berna foi subindo com delicadeza e calma passando lindamente pelos dois cruxs e a passada delicada após os mesmos. As passadas são lindas e exigem muito trabalho de pé e acreditar em micro agarrinhas. Difícil e muito maneiro.
Achava que eu estava lenta e já pensava secretamente que não íamos conseguir finalizar as 3 vias de dia, o que era um problema, uma vez que só tínhamos uma headlamp. Mas ao chegar no final da Arco, vimos que eram apenas 9:45 (4 horas e 15 minutos após o início). Ficamos felizes e imediatamente começamos a rapelar pela Decadence. O rapel durou apenas 1 hora! Sensacional. Deixamos as cordas fixas nos últimos dois rapéis e desescalamos os últimos 10 metros até a base, onde comemos, bebemos e nos pusemos a escalar novamente, eram 11 da manhã.
Subimos solando até P3 e depois continuamos à francesa até P7. Fui costurando um grampo aqui outro lá até que não aguentava mais escalar, precisava descansar. Fiquei feliz quando as costuras acabaram e tive que parar e puxar o Berna. Dali, revezamos a guiada.
Subindo a decadence, meu corpo começou a reclamar. Meus dedos dos pé e calcanhares estavam doloridos com a sapatilha. Meus dedos da mão reclamavam de cada reglete que eu tinha que agarrar. Meu braço estava reclamando de um músculo que havia sido "puxado". Meu corpo todo estava meio que dormente. Determinação. Sabia que o Berna também sofria com a sapatilha e nenhum dos dois reclamava muito, apenas um comentário aqui, outro ali. Seguíamos adiante, sem pensar em parar ou desistir. Estávamos com o objetivo na cabeça.


Começou a pingar, mas ninguém falou nada. Era como se não falássemos, não estava acontecendo. Continuamos a subir, num ritmo rápido, numa corrida contra o tempo, ou melhor, contra a chuva. Íamos insistindo, até que não tinha mais como fingir que não estava molhando e tive até que colocar o anorak.
Esperamos um pouco, mas como o Berna tinha esquecido o anorak, resolvemos descer. Estávamos na base do crux da Decadence (P14), eram apenas 1:45 da tarde, 2 horas e 45 minutos depois de termos começado a escalar a Decadence, mas a chuva não deixava a gente continuar.
Rapelamos sem pressa, a chuva inconstante nos deixava com esperança de ainda poder escalar a Leste. Mas cada vez que ousávamos pensar que a chuva ia parar e a parede ia secar, ela voltava mais forte do que antes. A pedra encharcou, a base da Leste tinha várias piscinas e, a nós, só nos restava arrumar as coisas e voltar para a pizza do Serginho.
Não completamos nosso objetivo, mas estamos longe de poder reclamar, pois fizemos a Arco inteira e a Decadence quase inteira, um total de 27 enfiadas. E tínhamos disposição e cabeça para continuar se o tempo tivesse deixado. Foi um bom treino que deixou um gostinho na boca de precisar voltar para poder terminá-lo.


28 de out. de 2009

Heróis

Ano passado li o livro "The Mountains of my Life" (as montanhas de minha vida) de Walter Bonatti. Já nas primeiras páginas, esse italiano se tornou uma inspiração para mim, um herói.
Esse ano, depois de muito tempo procurando, consegui comprar o livro "Conquistadores do Inútil" de Lionel Terray. E esse escalador francês me conquistou com o primeiro parágrafo que divido com vocês:
"Toda minha vida foi dedicada às montanhas. Nasci nos pés dos Alpes, fui campeão de esqui, guia profissional, amador das grandes escaladas dos Alpes, e membro de oito expedições aos Andes e Himalaia. Se a palavra tem algum significado, eu sou um montanhista (mountaineerer)" - minha tradução
Mais um herói!

29 de set. de 2009

Escalada no sangue



Um dia, um amigo e grande escalador falou que eu tinha “escalada no sangue”. Imediatamente, senti um certo calor subindo pelo meu corpo, daqueles que a gente sente quando um grande elogio é dirigido a você. Se alguém tivesse olhando para mim na hora, certamente teria visto um rosto iluminado e provavelmente enrubescido de felicidade.
Identifiquei-me prontamente com essas palavras e fiquei saboreando-as por um momento. Não discutimos muito sobre seu significado, pois ambos sentíamos a escalada em nossas veias e sabíamos que palavras não fariam jus a esse sentimento. Continuamos bebendo cerveja e jogando conversa fora.
Alguns meses depois desse primeiro contato com essa expressão, me deparei com outra expressão que traduz mais ou menos a mesma coisa. Foi uma frase que saiu no filme “The Wall”, com Serginho Tartari e Daniel Bonella: “a escalada, para muitos, é um esporte de louco. Para outros, um esporte de final de semana. E para poucos, um estilo de vida”.

Mas falar sobre o que é ter a “escalada no sangue” não é uma tarefa fácil e certamente será um desafio tentar traduzir em palavras um sentimento tão profundo, mas... mão no magnésio e vamos embora.

Comecei a escalar tarde, aos 21 anos, mas acho que sempre fui escaladora. Por isso, assim que comecei a escalar, me viciei. Sim, tenho que confessar que, ainda hoje (11 anos depois desse início), sou viciada em escalada. Me atirava nas pedras, nas vias sem pensar em conseqüências e fui aprendendo aos poucos como utilizar todo o equipamento disponível e a realizar os procedimentos quase que adequadamente. Com uma grande disponibilidade de tempo, escalava quase que diariamente.

Depois de 11 anos me atirando em diversos tipos de via, vejo que a escalada faz parte de quem eu sou e de como eu me defino. Tudo em minha vida, atualmente, gira em torno de montanhas, vias, escaladas e parceiros de aventuras. E vejo que ter e sentir a escalada nas veias vai além do grau que escalamos, quantas vias fizemos, com que frequência escalamos, quanta força temos no braço ou quão bom é nosso equilíbrio. Isso tudo faz parte do lado objetivo de escalar e que, na realidade, é facilmente ensinada e absorvida. É a parte mental, filosófica e espiritual da escalada que juntas formam a base de ter ou não a “escalada no sangue”.

Ter a “escalada no sangue” é amar o esporte, mas não se contentar em apenas faze-lo. É fazer da “escalada” um estilo de vida e abraçar com vontade e determinação as lições que tiramos de cada dia nas montanhas e atingir um equilíbrio espiritual que vem apenas com esse estilo de vida tão único. É saber que sua personalidade é grandemente definida como: “sou escalador/a” e ponto. E que se, por algum motivo, uma pequena parte disso é tirada deles, seria como arrancar uma parte vital de seu corpo, de sua alma.

Ter “escalada no sangue” é nunca se contentar com pouco. É ter o desejo de ir além, de se arriscar, de desafiar seus limites. É estar, literalmente, suscetível a grandes quedas e a recompensas incríveis e indescritíveis. É fazer a caminhada e chegar na base de uma parede, olhar para cima e se sentir pequeno, quase que impotente frente a grandiosidade da montanha. É sentir um frio imenso na barriga ao olhar a via, mas mesmo assim dar o primeiro passo para entrar na dança da verticalidade da escalada.

Para aqueles que têm a escalada correndo em suas veias, estar na frente de uma cordada é um método de meditação. Não existe outro lugar, hora ou atividade que estimule uma maior concentração ou um maior desligamento dos problemas e do mundo ao redor. Ignorando a fala do parceiro apreensivo, o escalador coloca a mente em outra dimensão e o foco se volta para a complexidade do momento: controlar a respiração, movimentos, equilíbrio e estado mental para passar um lance mais complicado... nada no mundo mais existe, apenas a dança vertical. A realidade das palavras vindo de baixo e da situação só atinge o escalador depois da liberação da adrenalina através de um grito, expiração profunda ou risos descontrolados após ter finalizado aquele movimento desafiador. É assim que construímos nossa personalidade, felicidade e ficamos mais perto de nos tornarmos seres completos.

É se sentir em casa nas montanhas, como em nenhum outro lugar do mundo e amar o sentimento de paz e tranquilidade que vem com o “estar e escalar” montanhas. Sentir a “escalada no sangue” é ter as montanhas na mente, no coração e na alma; sabendo que apenas escalando você tem a sensação de liberdade total, de segurança e acima de tudo de plenitude absoluta.

2 de set. de 2009

Parceria em Montanha

Já faz um tempo que tento escrever sobre parceria na montanha. Mas são tantas coisas que quero falar, tantos sentimentos que afloram com esse conceito, que nem sei por onde começar, mas vou tentar.
Amo escalar e para mim grande parte do que gosto na escalada e da onde aprendo as coisas que tiro das minhas aventuras vem dos meus parceiros. Não apenas isso. Tiro boa parte da minha força e determinação das pessoas com quem estou escalando. Não como um vampiro que suga sem dar nada em troca; mais como um processo de simbiose, onde dois organismos tiram vantagens mutuamente sem que nenhum seja prejudicado.
As montanhas e principalmente a escalada tem um poder fenomenal de juntar ou separar pessoas. Os momentos que vivemos nos desafiando em suas paredes verticais nos fazem extremamente verdadeiros, honestos. Duas palavras que denotam como nos comportamos durante nossas jornadas pela verticalidade da escalada. Cada momento é vivido intensamente e os sentimentos que são despertados para com seu parceiro ou parceira são tão genuínos e fortes que conseguem unir duas pessoas (ou separá-las) de maneira que só mesmo na montanha conseguimos ver.
Cada vez que vou pra montanha com pessoas esse sentimento de parceria é renovado. Independente de com quem eu esteja, seja uma pessoa que considero “parceiro/a”, um/a amigo/a, ou uma pessoa que acabei de conhecer... nossas atitudes, conversas e o jeito que a escalada flui me faz pensar em “parceria em montanha”.
Interessante é que pelo tanto que já pensei, eu deveria ter conclusões mais definidas, ou frases mais elaboradas. O sentimento é na verdade, ao mesmo tempo, tão abstrato e tão concreto que me deixa sem as palavras certas para descrever o que penso sobre parceria. Acho que nesse caso, minhas experiências falam mais alto e as definições ficam para segundo plano. Por isso, acho que, vira e mexe, vou voltar a esse tema que me fascina tanto, mas por enquanto termino por aqui, com o coração cheio de vontade de falar mais, mas com o racional bloqueado. :)