6 de abr. de 2009

Saindo da Zona de Conforto, Porteio ao Passo Marconi

Frio na barriga. Essa era a sensação que me dominava. As empresas de turismo de aventura da região vendem pacotes para a volta ao gelo continental e por isso contratam pessoas para levar parte da comida e equipamento para o meio do percurso antes deles irem, indo assim mais leves. Dessa vez, a gente, eu e Sblen, aceitamos um porteio para levar equipamentos e comidas para o Passo Marconi. O caminho além de longo e desconhecido, tinha uma boa parte em glaciar, terreno que não dominamos: frio na barriga.

Percebi que Sblen sentia a mesma apreensão que eu, mas não ousávamos em desistir, pois queríamos fazer isso e precisávamos da grana. Pegamos as coisas do porteio na empresa, minha mochila tinha 17kg e a do Sblen 20kg e ainda estavam sem os nossos equipamentos individuais e nossa comida... Fomos ao nosso acampamento e re-arrumamos as mochilas, agora com as coisas que precisávamos para cruzar o glaciar com segurança, comida para dois dias e equipamentos para passar a noite. Minha mochila, no final, tinha cerca de 25 kg e a do Sblen 30kg e tínhamos a nossa frente uma caminhada de mais ou menos 25 km. Trocamos, mais uma vez, olhares apreensivos e fomos dormir.

O dia começou apressado, pois nossa carona chegou adiantada e com pressa. No caminho, uma surpresa agradabilíssima, vimos um puma! Ele cruzou a estrada tão rápido que se tivéssemos piscado os olhos naquele momento não o teríamos visto. Mas o vimos e que lindo!! Na mesma hora, eu e Sblen falamos: o dia será muito bom!

A trilha começa com pela já conhecida trilha para a Piedra del Fraille. Uma vez que lá chegamos, não subimos para as Piedras Negras, e sim continuamos pela planície, seguindo o Rio Elétrico, em direção ao fundo do vale. Desde o cume da Guillaumet, víamos esse fundo de vale, lindo, imponente e com um glaciar com muitas gretas e todo azul. Era para lá que estávamos indo. A essa altura o frio na barriga já tinha quase congelado meus órgãos.

Percorremos os cascalhos na margem do lago Elétrico que não acabava nunca. E sobe e desce pirambeira, cruza o Rio Pologne, sobe e desce, anda por morenas e mais morenas. Na Patagônia, não queremos ver morenas, mas elas cismam em estar em nossos caminhos. Calma, essas morenas não são mulheres não, são restos de pedra e solo formados pelos glaciares em sua movimentação anual e ao longo do tempo e que formam um terreno nada fácil de percorrer. Muitas vezes as pedras são tão soltas que nossa velocidade tem que diminuir tanto quanto nossa atenção redobrar para que nossos passos sigam pelo local mais seguro. Definitivamente, as morenas da Patagônia são bem chatas e cansativas, ainda bem que sou loira!

Mas voltando ao caminho, depois de 5 horas e meia caminhando, chegamos na metade do percurso, um lugar chamado Prainha, na margem do Lago Elétrico. Comemos, descansamos e olhamos nosso caminho pela frente: estávamos bem perto do glaciar e a metade mais difícil da trilha estava prestes a começar. Não perdemos muito tempo e nos pusemos a andar novamente até chegar ao glaciar.

E foi então que começou um mundo novo que trouxe com ele muitos questionamentos e novos sentimentos. Íamos entrar em uma área fora da nossa zona de conforto e o medo do desconhecido era grande. Eu nunca tinha entrado em um glaciar com gretas e Sblen já tinha feito um curso, mas por algum motivo, ele estava com mais medo do que eu. Ficamos um bom e precioso tempo buscando por onde entrar no glaciar, o que nos foi indicado por dois argentinos que vinham atrás da gente.

Andar no glaciar se demonstrou ser mais fácil do que eu estava esperando, afinal, naquele lugar as gretas estavam descobertas. Mas para os novatos pretensiosos, tudo era meio esquisito e usamos dos recursos que tínhamos para garantir a segurança: grampons nos pés, piquetas a postos e encordamento devido. Tudo isso, no final, acabou nos retardando e era um pouco de parafernália demais para um glaciar tão tranqüilo, mas não sabíamos disso naquele momento e os equipamentos nos davam uma sensação de segurança que nos ajudava a seguir em frente.

Começamos a subir e subir e o cansaço cada vez falava mais alto. Estávamos exaustos e o GPS nos indicava que faltavam ainda 9 km, sendo 6 de subida! Os argentinos ficaram pelo caminho e eu e Sblen continuamos pela parte mais perigosa do dia: uma passagem entre as gretas profundas na direita e os grandes seracs que estavam prestes a cair na esquerda. Respiramos profundamente, abaixamos as cabeças e fomos para cima, sempre para cima. O cansaço era monumental e as mochilas pareciam cada vez mais pesadas, mas não ousamos parar nessa parte. Continuamos até que as pernas não puderam mais e sentamos em um lugar protegido dos seracs. A subida e as gretas não acabavam e o tal do refúgio parecia que nunca iria chegar.

Avistamos um nunatac, um afloramento rochoso no meio do branco do glaciar. Fomos até lá e resolvemos dar uma olhada no GPS apenas para descobrir que ele tinha parado de funcionar. Até então, o mantivemos dentro do casaco, mas o frio era tão intenso que o calor do corpo na região do tórax não foi o suficiente para aquecer as pilhas e elas pararam de funcionar. O impacto dessa notícia foi devastador; estávamos caminhando a 10 horas, as mochilas estavam um horror, o corpo e a mente estavam exaustos e para piorar, estava começando a nevar. O desespero foi profundo e cada um reagiu de uma maneira: Sblen perdeu toda a energia, largou a mochila e sentou no chão. Eu no meu silêncio e angústia larguei a mochila e comecei a andar na direção que imaginava ser o refúgio, onde íamos passar a noite. Ambos pensávamos, secretamente, que íamos ter que bivacar ao relento. Não tínhamos fogareiro, pois na ânsia de diminuir o peso das mochilas, decidimos não o trazer. Isso queria dizer que não tínhamos água e a essa altura já estávamos bem desidratados. Andei por uns 10 minutos e nada. Voltei desolada, com uma angústia que nunca havia sentido na minha vida. Olhei ao redor procurando algum lugar abrigado da neve e do vento que insistiam em nos atormentar, mas via apenas a imensidão branca do glaciar. De repente, vi o Sblen em pé e andando na minha direção com uma cara bem melhor, o que me deu um ânimo. Ele tinha conseguido fazer com que as pilhas voltassem a funcionar através do aquecimento delas (as colocou na virilha!). Ótimo, ficamos eufóricos, mas ainda tínhamos 3 km para andar e 3 horas de luz. O frio era intenso, os pés estavam encharcados, mas tínhamos idéia da onde estávamos e para onde precisávamos ir.

Decidimos largar boa parte do peso ali, nesse nunatak, para andarmos mais rápido e termos a segurança de encontrar o refúgio ainda com a luz do dia. Foi uma decisão difícil, pois sabíamos que no dia seguinte teríamos que voltar a esse lugar e resgatar o que estávamos largando para trás, mas achamos ser a melhor solução tendo em vista nosso enorme cansaço. Andamos na direção para qual o GPS apontava, ou melhor, para onde interpretamos ser a direção correta. Era uma subida, um morro com um desnível de uns 100 metros. Meu cansaço aí começou a tomar conta de mim, quase não tinha comido nada e não bebia nada fazia um bom tempo. Ia bem devagar até que, quando chegamos ao topo desse morro, minha energia se esgotou. Pedi um pouco de comida e comi sem parar de andar, pois a necessidade de chegar ao abrigo era grande. Meu estado estava crítico, nunca tinha me sentido tão exaurida assim na minha vida. Não conseguia pensar direito. Sblen percebendo isso, tomou a frente das decisões, me ordenando para ir para cá ou para acolá incessantemente e eficientemente. Eita parceiro bom!

Notamos que estávamos indo muito para o Norte e que tínhamos que mudar nosso rumo indo mais para o oeste. Nessa hora, Sblen nos dá a melhor notícia de muito tempo: ele avistou as antenas do abrigo. A felicidade foi completa e partimos em direção ao local indicado. Em poucos minutos, eu avisto também as antenas, mas umas antenas bem diferentes e mais perto do que as do Sblen. Ele me diz para irmos para as “minhas antenas”, mas eu, consciente do meu estado, digo para seguirmos para suas antenas. Depois de um pequeno debate, seguimos para as “antenas dele”, que no final eram as certas. Eu estava tão desgastada que havia imaginado umas antenas verdes com uma forma de uma cantoneira de uns 2 metros e que mais pareciam antenas da NASA para comunicação com ETs do que qualquer outra coisa (alucinação?). Na hora que as avistei, elas eram muito reais, mas por algum motivo, eu sabia que elas não estavam ali.


Mantivemos nosso plano, Sblen na frente das decisões, e chegamos ao refúgio. Que felicidade! Não íamos mais passar a noite ao relento, na neve, no vento. Entrei no refúgio e fui em busca de algo para beber. Avistei uma garrafa térmica e não hesitei, a agarrei e balancei, havia líquido dentro. Senti o cheiro e tomei um bom gole. Ops... ECA! Não era água e sim gasolina! Eca! Esse era meu estado! Ms depois de água (dessa vez H2O mesmo) e comida, conseguia pensar melhor e assim fomos dormir, cansados, mas felizes.

No dia seguinte, um lindo amanhecer me desperta. Acordo o Sblen para dividir o espetáculo comigo. O deslumbre foi total e nos fez esquecer de todas as dificuldades do dia anterior. Mas ainda tínhamos que resgatar o material que deixamos 3 km atrás, para depois poder ir para casa. Mas agora, o caminho era conhecido e descida, além do que o pouco da experiência adquirida no dia anterior nos deixou mais rápidos e eficientes. Os longos 25 km passaram devagar, mas finalmente chegamos de volta a Chalten com muita bagagem de conhecimentos novos, bolhas nos pés, nos conhecendo um pouco mais e, claro, um cansaço surreal.
Em Chalten, pensando em tudo que vivi nos dias anteriores, me lembro de uma frase de um grande escalador brasileiro: “a Patagônia desperta sentimentos que nem sabia que existiam”. É, Ale, agora te entendo.

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